Na mira do empoderadamento feminino ao redor do globo – e tendo como alvo a ressignificação de abusos sofridos em diversas culturas –, o Atelier Chilaze embarca numa viagem de balão virtual, reimaginando a rota do clássico de Jules Verne
A trip agora é digital. Pelo menos por enquanto. Na impossibilidade momentânea de alçar grandes voos por causa da desglobalização forçada, nos resta viajar diante da tela dos devices. Nos dois sentidos: no relaxing e no geográfico. Por hora, o mundo está literalmente – e apenas! – ao alcance do computador. Agora, os cartões postais se resumem a imagens de #tbt nos feeds do Instagram. Frustrante? Talvez. Ou estimulante, quem sabe? Pensando nisso, o Atelier Chilaze olhou para trás para pensar adiante: focou no passado mecânico de uma era pré-informática para refletir sobre o momento atual, se inspirando num dos maiores clássicos da ficção infanto-juvenil – “Volta ao mundo em 80 dias”, de Jules Verne, escrito em 1873 no limiar da 2ª Revolução Industrial.
A partir das peripécias do inglês Phileas Fogg e seu fiel escudeiro Jean Passepartout, protagonistas da obra-prima, Claudia e Sandra Chilaze refazem o percurso da narrativa com a devida licença poética, alterando o itinerário para recônditos relevantes em dias de responsabilidade social. O foco? O empoderamento feminino, questão que move a brand na criação de acessórios e homewear que promovem a autoestima. No seu balão virtual com levada steampunk, as irmãs movimentam a sua bússola rumo a localidades planetárias que têm a ver com o mundo que nos cerca, navegando em direção a paragens onde a posição da mulher é louvável e a outras nas quais as condições sub-humanas precisam ser denunciadas.
Afinal, se agora impera trocar o flanar pelo engajar, que ele seja sincero. Até porque, nas mídias digitais, o engajamento muitas vezes é fake. Então, que tal substituir a vontade profana de obter likes pelo desejo genuíno de transformar o planeta? No roteiro dessa intrépida jornada, a nova coleção cápsula do Atelier Chilaze é tanto metáfora para necessários avanços sociais em prol das mulheres quanto libelo para a supressão de comportamentos tóxicos que insistem em privá-las de um admirável mundo novo. Que urge agora, no novo normal.
Na trajetória dessa nova coleção, ninguém viaja sem eira nem beira: os ventos da moda sopram o dirigível on-line a culturas que, se por um lado são espetaculares por sua riqueza, podem ser consideradas primitivas pelo domínio patriarcal que ainda leva as mulheres à submissão e torturas. Físicas e psicológicas, capazes de causar cicatrizes irreversíveis. Ou ainda a modificações corporais à revelia, inaceitáveis em tempos atuais. Tais tradições encontram paralelo no nosso cotidiano urbano ocidental em intoleráveis hábitos arraigados no ambiente contemporâneo, como a discriminação de gênero, a violência doméstica, o assédio e a diferença de salário por sexo, corroborando, no âmbito da disputa entre os gêneros, com aquilo que o pensador evolucionista queniano Richard Dawkins definiu em seu “O gene egoísta” (The Selfish Gene, Companhia das Letras, 2007): a batalha entre os sexos sempre fará com que um tente submeter o outro, e o gene egoísta masculino teria se encarregado, ao longo dos tempos, de controlar o comportamento feminino para a sua supremacia.
Diante disso, o que seria mais pré-histórico? Ou demodê? A mutilação da genitália feminina (MGF) – clitoridectomia, excisão e infibulação – em cerca de 30 países de regiões da África Subsaariana e da Ásia, ou a postura do Brasil, único país americano a se recusar a mencionar o termo “saúde sexual e reprodutiva” em um texto proposto por países africanos em julho de 2020, na ONU, para banir essa prática? A burca que leva à invisibilidade como forma de suprimir o desejo, o apedrejamento de mulheres em países regidos pelo Talibã, a amputação dos seus dedos por usarem esmaltes nas unhas ou o levantamento realizado pela organização britânica Womankind Worldwide de que a violência contra a mulher continua endêmica no Afeganistão, onde 60% a 80% dos casamentos consumados são fruto de transações econômicas (dotes) e 57% das noivas têm menos de 16 anos? Difícil definir qual a maior barbárie.
O que repudia mais? Reduzir a curiosidade de safári, na Tailândia, as mulheres-girafa da etnia Karen autobanidas de Myanmar, prontas a enriquecer agências de turismo tal qual um freak show, ou a dominação milenar das chinesas, tibetanas e coreanas por meio da deformação dos pés por ataduras e quebra dos ossos, desde a tenra idade, a fim de satisfazer fetiches masculinos? A constatação, através do estudo realizado em 2012 pela Reuters Thompson Foundation, de que a Índia é o integrante do G-20 no qual as mulheres mais sofrem discriminação pela crença de serem inferiores, sobretudo nas afastadas planícies no norte do país, ou a banalização dos estupros sofridos pelas cidadãs somali no campos de refugiados de Mogadíscio, após fugirem das regiões dominadas pelos militantes islâmicos da Al-Shabaab?
A pesquisa dessa nova cápsula de peças, lançada no mês que celebra a mulher, aponta para abusos seculares que servem de prelúdio para denunciar aberrações atuais – o feminicídio, racismo, misoginia, preconceito e a coerção que a sororidade ainda não conseguiu resolver no Brasil da Era de Aquário. Dessa forma, subverter é preciso: signos de sultanatos sociais que relegam a mulher a objeto são ressignificados pelo Atelier Chilaze à condição de empoderamento delas, numa digníssima inversão de valores, em imagens que valorizam a exuberante natureza planetária em sintonia com a essência feminina. Trata-se da não-burka.
Por outro lado, esse mergulho aprofundado também aponta para localidades que, sem necessariamente serem paraísos, podem ser consideradas idílicas do ponto de vista da dignidade feminina. É o caso das tribos do Vale do Omo, no sul da Etiópia, com pouquíssima influência ocidental, mas presença solar da figura feminina. São mais de 50 etnias, povos como os Mursi, Hamer, Karo, Arbore, Suri e Surma, muito simples, mas de tradições únicas. Todos extremamente vaidosos, sem distinção de sexo, sobrevivendo da agricultura e pecuária de subsistência, e equivalendo, em isolamento, a populações amazônicas como os yanomamis. São pequenas culturas com características peculiares que, em comum, dividem do respeito à mulher à valorização dos adornos, a pintura corporal e a escarificação – decoração voluntária da cútis com desenhos em relevo criados a partir do talho na pele e o surgimento de queloides.
O Atelier Chilaze crê na potência de transgredir comportamentos descabidos. Mais que isso, leva fé na possibilidade de, com atitudes positivas e através da valorização da beleza plural, contribuir para a mudança necessária. Como diz o concierge interpretado por Ralph Fiennes em “O Grande Hotel Budapeste” (2014), de Wes Anderson: “Ainda resta um lampejo de refinamento na barbárie que se tornou a civilização”.
Comunidades de artesãs continuam sendo presença vital na criação da brand, em collabs bacanudas, seja no manuseio da palha, corda e bambu, na marcheteria da madeira com resina ou nos tingimentos orgânicos. São pólos espalhados pelo Brasil e exterior, que Claudia Chilaze garimpa com afinco para desenvolver sua moda consciente, traduzida em bolsas, clutches, chapeus, luminárias, banquinhos, cestaria e leques, cujo processamento final é executado na própria oficina, no Rio. Agora, além do Rio, Minas, Bahia, Ceará e Rio Grande do Sul, talentos locais do Maranhão, Pernambuco e até do Peru engrossam as fileiras de colaboradores do Atelier Chilaze.
Na coleção, grafismos em preto & branco contracenam com cores sólidas e translúcidas, em aspecto brilhante ou lalique, numa cartela de cores que transita entre a resina handmade manuseada sem descarte e as linhas e cordas naturais, usadas em alças, tiras, borlas, barbicaches e macramês, evocando a luminosidade necessária aos tempos atuais. Peças geométricas se harmonizam com orgânicas, como pingentes de elefantes, para trazer boa sorte. É disso que todos precisamos.